Mesmo com a influência da tecnologia, o ato de brincar continua essencial para o desenvolvimento e a formação das crianças
A descrição de como eram as rodas de ciranda com músicas e danças decoradas, as disputas de pião ou os jogos com uma bola são brincadeiras que geram nostalgia em muitas pessoas, afinal, esses eram cenários que enfeitam as ruas e os bairros que tinham uma grande concentração de crianças até alguns anos atrás.
À primeira vista, essas atividades podem parecer apenas uma forma de lazer, mas têm papel essencial no desenvolvimento das crianças. Brincar estimula a socialização, desperta emoções e incentiva a curiosidade, fatores que contribuem diretamente para o desenvolvimento cognitivo, emocional, social e motor na infância.
Com o passar dos anos, porém, o ato de brincar também se transformou. O cenário nostálgico das décadas de 1970, 1980 e 1990 — marcado por ruas cheias de crianças, piões e rodas de ciranda — já não é o mesmo. As brincadeiras se reinventaram para acompanhar novas gerações, cada vez mais conectadas, rápidas e imersas na tecnologia.
Nesse novo contexto, o brincar deixou de ser sinônimo apenas de liberdade nas ruas e contato direto com outras crianças para se adaptar a novos espaços e formas de interação. A mudança é perceptível, sobretudo, para quem acompanha de perto o comportamento infantil.
O psicólogo infanto-juvenil Paulo Henrique Coqueiro afirma que é possível observar uma nítida diferença em relação às brincadeiras das gerações passadas, que eram realizadas em ambientes mais livres. “As brincadeiras tinham que ser mais criativas, até porque na interação ali acabavam aparecendo algumas ideias, as crianças iam se modificando na dinâmica, e aí consecutivamente o foco da interação ali era o que permeava a interação entre as crianças”, explica Paulo.
Naiara Jordão, de 39, é designer de sobrancelhas, e viveu a sua infância nas décadas de 80 à 90. Ao relembrar o passado, ela comenta que vê uma grande diferença na liberdade de espaço e tempo e o quanto isso impacta as crianças. “Antigamente parecia que o tempo rendia mais, hoje é muita correria e se não planejar bem não temos tempo pra nada. Eles perdem no desenvolvimento. Hoje vemos como é comum encontrar crianças que não gostam de brincar”, explica Naiara.
Francieli Gonzales, de 34 anos, é pedagoga e também relata a percepção que tem de sua infância. “Me lembro que era uma época bem tranquila e calma, onde podíamos brincar até tarde da noite”, conta ela ao relembrar com nostalgia aquela época.
Apesar de não se conhecerem, Naiara e Francieli partilham características em comum. A infância de ambas foi marcada por brincadeiras na rua com amigos e vizinhos, com quem dividiram espaços e ideias criativas para passar o tempo. Quando questionadas sobre qual brincadeira mais gostavam, ambas responderam que é o Bets. Naiara lamentou que as crianças hoje não conhecem a brincadeira, enquanto Franciely afirma que o jogo pode mostrar às crianças que não é preciso tecnologia para se divertir, basta imaginação, presença e boas companhias.
Atualmente Franciely e Naiara conseguem reviver um pouco da infância através dos filhos. Pelo relato das crianças, o contato com as telas faz parte do dia a dia, mas de forma controlada. Entre jogos digitais e vídeos na internet, ainda há espaço para brincadeiras tradicionais, como pega-pega e esconde-esconde, principalmente quando estão com amigos ou família.
Essa rotina equilibrada mostra que, mesmo diante das mudanças trazidas pela tecnologia, o interesse pelo brincar continua presente, apenas ganhou novos formatos e linguagens. Esse equilíbrio, segundo especialistas, é fundamental para que o desenvolvimento infantil ocorra de forma saudável, unindo o aprendizado e a interação do mundo digital com as experiências afetivas e criativas das brincadeiras presenciais.
Mas é preciso a atenção dos pais para que o tempo diante das telas não ultrapasse o limite saudável, já que essa exposição traz impactos perceptíveis no comportamento e nas relações das crianças. O psicólogo Paulo Henrique explica que é perceptível os sinais de uso exagerado da tecnologia. “Qualquer coisinha a criança se estressa, se frustra. Pouco tempo de permanência, pouco tempo de tentativas para resolver o problema, ou a criança simplesmente se desinteressa pela negociação do acordo com outras crianças”.
Segundo a psicopedagoga Olivia Carromeu, as brincadeiras são muito mais do que simples momentos de diversão, elas constituem um instrumento essencial para o desenvolvimento integral da criança. “Por meio do brincar, a criança pensa, cria, experimenta e aprende a resolver problemas, desenvolvendo não apenas o raciocínio lógico, mas também a criatividade, a autonomia e as habilidades socioemocionais, que tanto queremos que todos estejam com essas habilidades em dia”, afirma Olívia.
A importância do brincar, portanto, vai além do entretenimento e assume diferentes funções conforme o tipo de atividade. Enquanto as brincadeiras tradicionais favorecem o contato social e o uso do corpo, as digitais também podem contribuir para o aprendizado e o raciocínio, quando utilizadas com equilíbrio e propósito. Essa distinção, segundo o psicólogo infanto-juvenil Paulo Henrique, ajuda a compreender como cada forma de brincar estimula habilidades específicas nas crianças.
“Você pega brincadeiras mais tecnológicas e trabalha com coordenação motora fina, em que trabalha resolução de problemas. É um brincar simbólico com resolução de problemas, conflitos e afins. Só que quando você pega um brincar mais tradicional, você trabalha tudo isso, mas também trabalha majoritariamente a socialização. Você trabalha a coordenação motora ampla, o corpo, a percepção do corpo, então vai estimulando mais habilidades. Acho que essa é a diferença crucial. As duas podem ser consideradas brincar, contudo, são brincadeiras que estimulam aspectos diferentes”, enfatiza Paulo Henrique.
A diferença entre o brincar tradicional e o digital, portanto, não deve ser vista como uma disputa, mas como uma oportunidade de integração. O equilíbrio entre os dois mundos pode potencializar o desenvolvimento das crianças, oferecendo tanto os benefícios da convivência e da criatividade quanto os estímulos cognitivos e tecnológicos presentes nas novas formas de brincar.
Para que isso aconteça, o olhar dos adultos é fundamental. Pais, responsáveis e professores exercem papel importante ao orientar o uso das telas e incentivar momentos de interação real. O incentivo ao brincar livre, às atividades em grupo e ao uso da imaginação ajuda a manter viva a essência da infância, mesmo em uma era cada vez mais digital.
Diante dessas mudanças, os próprios espaços voltados à infância também têm se transformado. Escolas têm apostado em atividades lúdicas que unem o aprendizado ao movimento e à socialização, valorizando o brincar como ferramenta pedagógica. Parques, praças e áreas de lazer também vêm se adaptando, com estruturas que estimulam tanto o corpo quanto a imaginação, criando oportunidades de interação fora do ambiente virtual.
Para a psicopedagoga Olívia Carromeu, o papel dos adultos é fundamental para que o brincar continue ocupando o espaço que merece na infância. “Tanto a família quanto a escola devem ficar atentas às brincadeiras das crianças. As brincadeiras ainda são a melhor forma de deixar o cérebro de uma criança saudável, pois ela estimula diversas áreas, diversas regiões do cérebro que está em desenvolvimento. Então se todos estimularem essas brincadeiras, elas vão fazer muito bem a esse desenvolvimento infantil”, orienta a psicopedagoga.