Celebrado em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra é dedicado à memória de Zumbi dos Palmares e à história da população negra no país
Entre os séculos XVI e XVII, o Brasil colonial que se desenvolvia era sustentado sobretudo pelo trabalho forçado de africanos escravizados. Nos engenhos e fazendas, homens, mulheres e crianças cumpriam jornadas exaustivas sob sol intenso e realizavam tarefas que iam desde o plantio e a colheita da cana-de-açúcar até o transporte e a moagem nos engenhos. A disciplina era mantida pela violência: açoites, punições severas e vigilância constante marcavam a vida diária dessas pessoas, que viviam sem liberdade e sob constante ameaça. Com isso, uma forma de resistência encontrada por essas pessoas foi a fuga.
Os escravizados percorriam longos caminhos por matas densas, rios e trilhas, sem mapas ou guias, e tinham como base apenas as experiências anteriores de outros fugitivos. Aos poucos, esses grupos se organizavam em áreas isoladas que formavam os mocambos, mais tarde estruturados como quilombos. Essas comunidades tinham sistemas próprios de moradia, produção de alimentos e defesa.
Entre os quilombos que surgiram nesse período, o Quilombo dos Palmares se destacou pelo tamanho e pela duração. Localizado na região da Serra da Barriga, no atual estado de Alagoas, o território chegou a abrigar milhares de pessoas em diversos povoados interligados, com sistemas produtivos e estratégias de defesa que permitiram relativa autonomia por décadas. Mesmo sob constantes ataques das forças coloniais, Palmares conseguia se reorganizar e manter sua estrutura, tornando-se um dos símbolos mais importantes da luta contra a escravidão no período colonial.
Entre seus líderes, Zumbi se destacou como chefe militar e articulador da comunidade. Nascido no final do século XVII, passou grande parte da vida em Palmares, participou da defesa contra expedições militares e atuou na manutenção da organização social e econômica do quilombo. A liderança de Zumbi e a memória da resistência do quilombo, fez com que sua morte, em 20 de novembro de 1695, fosse escolhida como data símbolo da resistência negra.
Ao longo dos séculos seguintes à destruição de Palmares, a lembrança da resistência negra permaneceu através de relatos de viajantes e posteriormente, em pesquisas históricas. Foi somente no século XX que movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos da população negra passaram a recuperar essas histórias e dar visibilidade à luta por liberdade e igualdade. Nesse processo, a figura de Zumbi dos Palmares se consolidou como símbolo da resistência contra a escravidão.
O Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, surgiu justamente para oferecer uma leitura histórica centrada nessa resistência, e não apenas na abolição formal representada pelo 13 de maio (data da assinatura da Lei Áurea).
Segundo Samuel de Jesus, professor de Educação das Relações Étnico-Raciais do curso de História da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), ainda é comum que a história da resistência negra seja pouco explorada, e isso vai desde o ensino tradicional nas escolas. “A inserção também de personagens históricos, de históricas negras. A história não pode ser uma história apenas de personagens brancos! É necessário uma mudança, por exemplo, nos planejamentos e naqueles momentos de educação pedagógica dos professores e que seja trabalhado no aprimoramento dos professores. Isso do ponto de vista lúdico também, do ponto de vista informativo, é fundamental”, afirma.
O professor também considera que o 20 de novembro ajude a romper a ideia de que a população negra viveu a escravidão de forma passiva. “Inserir Zumbi na história e na consciência coletiva da sociedade, do ponto de vista da repressão, de uma representação simbólica que demonstra a opressão do povo negro. Isso é algo muito importante, porque trata-se de uma batalha simbólica também. Nessa batalha simbólica seria muito importante que figuras como o Zumbi dos Palmares tivessem nos livros de história, que a história estivesse sendo contada. Porque ele representa a luta do povo negro”, concluiu o Samuel.
20 de novembro como feriado nacional
A consolidação do 20 de novembro como feriado nacional foi resultado de mais de cinco décadas de articulação política e acadêmica. As primeiras mobilizações ocorreram nos anos 1970, quando grupos do movimento negro passaram a defender uma data que estimulasse reflexão crítica sobre o papel histórico da população negra e sobre a narrativa de abolição. Nos anos 1980, a data ganhou espaço em eventos, materiais educacionais e discussões públicas.
A inclusão do tema no calendário escolar, em 2003, e o reconhecimento oficial da data em 2011 ampliaram esse movimento. A sanção da Lei nº 14.759, em dezembro de 2023, tornou o 20 de novembro feriado nacional, e o integrou ao calendário brasileiro.
Para Samuel de Jesus, o reconhecimento nacional reflete uma mudança na forma como o Brasil revisita seu passado. “A africanidade está nos nossos usos, nos nossos costumes cotidianos, na nossa forma, na forma do brasileiro de pensar, de agir. Então a importância para o Brasil é enorme, não só na embalagem. Palavras que nós dizemos no dia a dia, que são de origem africana, mas em várias, na forma de pensar, sentir e agir, cotidianos”, argumenta o professor.
O debate sobre a história
A discussão sobre Consciência Negra é um debate que permanece atual devido às desigualdades estruturais resultantes da escravidão. “A lei, por si só, ela não resolve. Por quê? Porque tem que haver uma formação, uma mudança de consciência, uma mudança de mentalidade. Porque, como eu disse, todos os dados, seja no mercado de trabalho, seja na qualidade de vida, seja na dupla jornada, até mesmo falando da escala 6×1, seja durante a pandemia. A população negra, ela é ainda vitimada. Ela é ainda excluída. Ela é ainda marginalizada”. Para Samuel de Jesus, essa realidade explica a própria existência do feriado: ele não é uma celebração, mas um mecanismo de enfrentamento das desigualdades.
O professor avalia que o dia 20 de novembro ajuda a enfrentar a ideia da “democracia racial”, disseminada no século XX, mas incompatível com os indicadores atuais. “ A lei por si só é um passo. O primeiro passo, ele é importante, mas o racismo no Brasil não se dá pelo aspecto formal. O racismo no Brasil se dá pelo aspecto informal, no não dito, naquilo que não é falado”, afirma Samuel.
Desigualdade estrutural e permanências do pós-abolição
Para além do resgate histórico, o debate sobre a Consciência Negra envolve entender como a desigualdade racial segue presente na sociedade brasileira. Segundo Samuel de Jesus, a abolição da escravidão não foi acompanhada de medidas que garantissem inclusão social, acesso à terra ou condições de vida dignas para a população negra. Ele observa que o estado brasileiro, ao contrário de outros países, não criou políticas de transição que permitissem autonomia econômica às pessoas libertas.
Na avaliação do professor, isso contribuiu para a formação de um cenário em que ex-escravizados permaneceram submetidos a relações de trabalho precárias, em atividades com baixa remuneração e pouca proteção. “O que ainda falta para que a população negra tenha igualdade de oportunidades e reconhecimento social?” , questionou Samuel. “Falta construir um país mais justo, um país que acabe com a escala 6×1, por exemplo. Um país que amplie e melhore cada vez mais o atendimento à saúde. Um país capaz de gerar pleno emprego, ou seja, emprego para todos. É um país que tem investimentos maciços em educação, porque a desigualdade no Brasil tem cor e é a cor preta”, concluiu.
O sociólogo destaca que essas condições históricas ajudam a compreender por que a desigualdade racial permanece como um traço estrutural do país. Segundo ele, dados da Síntese de Indicadores Sociais 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que trabalhadores negros seguem concentrados em ocupações informais: naquele ano, a pesquisa apontou que 47,4% das pessoas pretas ou pardas estavam na informalidade.
“Nós precisamos refletir sobre qual a origem disto tudo, então deverá existir momentos de leitura, momentos de reflexão e de ação, e de ação do que pode ser mudado no âmbito da legislação, o que pode ser feito para que tenhamos não apenas um Brasil mais igual. Um Brasil mais fraterno, que não seja igual, mas que seja um país que aprimore a equidade. Igualdade é uma coisa. A equidade é algo bem melhor. A equidade pressupõe que as pessoas, devido a uma série de fatores, não possuem condições igualitárias”, defendeu.
O sentido do feriado e o debate atual
O feriado nacional de 20 de novembro carrega a proposta de ampliar a reflexão sobre racismo, desigualdade e memória histórica. Diferentemente de datas comemorativas tradicionais, ele foi concebido com caráter educativo, voltado a estimular discussões sobre cidadania, inclusão e combate às discriminações estruturais.
Na avaliação de Samuel de Jesus, o feriado não deve ser entendido apenas como dia de celebração, mas como instrumento político e pedagógico. “Para além da data, é preciso refletirmos sobre o seu sentido, sobre o seu significado. Então, o dia 20 de novembro de cada ano é um dia não só de feriado, de algum desfile, ou o filme onde o tema sobre o racismo esteja em alta. Mas, mais que um momento de reflexão, é um momento de ação”, concluiu o professor.
Foto de capa: Zumbi dos Palmares por Gorivero/Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0)

















