O prato do brasileiro está mudando, e de forma preocupante. Em um país conhecido pela variedade de frutas, legumes e tradições culinárias como o arroz com feijão, cresce o consumo de alimentos ultraprocessados. Prontos, embalados e de preparo rápido, esses produtos vêm substituindo as refeições frescas e caseiras, num movimento que preocupa especialistas em nutrição e saúde pública.
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, os ultraprocessados já representam quase 20% das calorias diárias consumidas no país, proporção ainda maior entre jovens e moradores das grandes cidades. Biscoitos, embutidos, refrigerantes e macarrões instantâneos são alguns exemplos de produtos que passam por várias etapas industriais, contêm aditivos químicos, corantes e aromatizantes e são pobres em nutrientes, mas ricos em calorias, açúcares, gorduras e sal.
“Vivemos uma transição alimentar silenciosa. Aos poucos, o ato de cozinhar e de escolher alimentos frescos está sendo substituído pela praticidade ofertada pela indústria de alimentos”, afirma Maria Tainara Soares Carneiro, professora e coordenadora do curso de Nutrição da Estácio. Segundo ela, essa mudança está ligada a fatores como tempo, renda e oferta. “Muitas famílias passam o dia fora e acabam recorrendo ao que é mais rápido e acessível. É uma questão social e estrutural”.
Urbanização e marketing impulsionam mudança
O avanço da urbanização e as longas jornadas de trabalho reduziram o tempo disponível para cozinhar, enquanto a indústria alimentícia oferece conveniência e preços competitivos. Para Tainara, o marketing também exerce papel decisivo nesse cenário.
“A publicidade é poderosa. Transforma o consumo em símbolo de praticidade e status. O problema é que esses produtos são pobres em nutrientes e ricos em gordura, sal e açúcar”, diz.
Pesquisadores da USP e da Fiocruz estimam que o consumo de ultraprocessados esteja associado a mais de 57 mil mortes prematuras por ano no Brasil, o equivalente a seis a cada hora. O dado, atualizado em 2024 pela revista American Journal of Preventive Medicine, relaciona o consumo desses produtos ao aumento do risco de obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão e doenças cardiovasculares.
Outros estudos apontam impactos cognitivos e emocionais, especialmente entre adolescentes. “A alimentação é muito mais do que energia. Ela influencia nosso humor, disposição e até a capacidade de aprendizado”, reforça a professora.
Reaproximação com o natural
Apesar do avanço dos ultraprocessados, Tainara acredita que é possível reverter o quadro com pequenas atitudes cotidianas. “Trocar o refrigerante pela água, levar frutas para o trabalho e preparar lanches caseiros já faz diferença”, orienta.
Ela defende o resgate do hábito de cozinhar como um ato de saúde e autonomia. “Cozinhar é um ato de autocuidado e economia. Quando você prepara sua comida, entende o que está comendo”.
A professora também recomenda que as famílias se organizem para adquirir e preparar alimentos in natura. “Planejar as compras e ler os rótulos com atenção é essencial. Quanto mais nomes químicos e ingredientes desconhecidos, maior a chance de ser ultraprocessado”, alerta.
Políticas públicas e educação alimentar
Em 2025, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) reduziu o limite de ultraprocessados na merenda para 15%, priorizando produtos da agricultura familiar, medida considerada um avanço na formação de hábitos saudáveis desde a infância.
Para Tainara, é fundamental que políticas públicas sejam acompanhadas de ações educativas. “Precisamos resgatar o valor cultural e afetivo da comida de verdade. Ensinar a cozinhar, planejar e reconhecer o que se come. Isso é autonomia alimentar”, afirma, citando as diretrizes do Ministério da Saúde presentes no Guia Alimentar para a População Brasileira e no Guia Alimentar para Crianças Menores de Dois Anos.
A professora destaca que o problema não deve ser visto apenas como uma escolha individual. “O ambiente alimentar é desenhado para nos empurrar aos ultraprocessados. Eles são mais visíveis, alguns com o valor mais acessível e convenientes. A responsabilidade deve ser compartilhada entre o poder público, a indústria e o consumidor”, conclui.
Enquanto isso, nas cozinhas e feiras brasileiras, o desafio permanece: reconectar o brasileiro aos alimentos que vêm da terra, e não da fábrica, é essencial para preservar a saúde e a identidade alimentar do país.
Foto: Alena Shekhovtcova