Enquanto a CPI das Bets avança no Senado com depoimentos de influenciadores digitais e representantes de casas de apostas, cresce o debate público sobre os impactos do jogo online, especialmente entre os jovens. Uma das frases mais repetidas nas redes sociais e defendida por parte dos convocados na comissão: “aposta quem quer”, é criticada por especialistas em saúde mental.
Para o médico residente em psiquiatria Lucas Pacini, essa ideia é não apenas equivocada, mas também perigosa. “Apostar não é, para muitas pessoas, uma decisão racional. É um impulso que se fortalece quanto mais vulnerável o indivíduo está”, afirma. “O jogo ativa áreas do cérebro ligadas ao prazer imediato e à recompensa, como o sistema dopaminérgico, e isso cria um ciclo muito difícil de quebrar”.
Pacini integra a residência em psiquiatria de um hospital público no Sul do país e tem acompanhado casos de dependência comportamental relacionados a jogos de azar. Para ele, o discurso de livre escolha ignora o principal fator que caracteriza o vício: a perda do controle.
A crítica do psiquiatra em formação contrasta com a fala de influenciadores que passaram pela CPI, como Virgínia Fonseca. A empresária afirmou durante seu depoimento que “não tem como socorrer quem perde dinheiro” e que “cada um decide se quer jogar ou não”.
Segundo Pacini, essa visão desconsidera os mecanismos neurológicos, emocionais e sociais que envolvem o vício em apostas. “Mesmo quando se perde, o cérebro entra em um estado de hiperexcitação com a expectativa da próxima aposta. Isso vicia. E quanto mais a pessoa perde, mais ela tenta recuperar — o que chamamos de ‘espiral do prejuízo’.”
O vício em jogos é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde e classificado como transtorno do controle dos impulsos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Pacini explica que o cérebro busca no jogo uma forma de escapar de sentimentos negativos como ansiedade, frustração e solidão.
Ele destaca que o problema é mais grave entre adolescentes e jovens adultos. “É justamente esse público que acompanha influenciadores digitais e vê a aposta como algo glamouroso, sem conhecer os riscos reais”.
Durante os trabalhos da CPI, a forma como as apostas são promovidas nas redes sociais se tornou um dos principais pontos de investigação. Os conteúdos incluem promessas de ganhos fáceis, linguagem lúdica e vídeos com “dicas” de como apostar. Para Pacini, esse tipo de publicidade estimula comportamentos compulsivos.
“O algoritmo das redes sociais já entrega exatamente o que prende a atenção do usuário. Quando se insere a possibilidade de lucro rápido, isso ativa áreas cerebrais similares às da dependência de drogas”, afirma. “Não é exagero dizer que muitos desses vídeos funcionam como gatilhos para recaídas em pessoas com histórico de jogo patológico”.
Ele também critica a ideia de que bastaria restringir o acesso de menores. “Essa é uma proteção formal, mas ineficaz na prática. O ambiente digital é pouco fiscalizado e facilmente burlável. A responsabilidade não pode ser transferida totalmente para o indivíduo”.
Pacini relata ter atendido pacientes em sofrimento agudo causado por dependência em jogos. “São histórias marcadas por perdas financeiras, rompimentos familiares e quadros de depressão profunda. O que começa como diversão muitas vezes termina em desespero, com tentativas de suicídio, dívidas impagáveis e isolamento social”.
Ele também aponta o papel do estigma como barreira ao tratamento. “É comum ouvirmos ‘eu estraguei tudo por minha culpa’. Poucos reconhecem que há um ciclo de reforço que escapa da simples ‘vontade de parar’. Por isso, banalizar o discurso com frases como ‘aposta quem quer’ é ignorar a neurociência e a realidade clínica”.
O médico defende uma regulação mais rígida da publicidade de apostas, além de investimentos em saúde mental e educação digital. “Não se trata de proibir o jogo, mas de criar um ambiente em que ele não seja apresentado como solução mágica”.
Para Pacini, é necessário que as plataformas mostrem os riscos de forma clara e controlem os gatilhos que estimulam o consumo impulsivo. “A saúde mental tem que ser parte dessa equação”.
Ele também propõe campanhas educativas nas escolas e nas redes sociais. “O jovem precisa entender que nem tudo o que parece ‘diversão inofensiva’ é realmente seguro. E os influenciadores também devem assumir responsabilidade social por aquilo que promovem”.
À medida que a CPI das Bets segue suas investigações, o alerta de especialistas como Pacini reforça que o debate não se limita à legalidade das apostas, trata-se de um problema de saúde pública. Para muitos, a aposta não é uma escolha, mas sim uma armadilha.
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