“A Polícia Federal recebe, em média, 1.500 denúncias por dia de conteúdo abusivo contra crianças. E isso é só a ponta do iceberg.” A constatação da secretária de Direitos Digitais do Ministério da Justiça, Lilian Cintra de Melo, evidencia a gravidade de crimes silenciosos que têm escolhido como alvo crianças e adolescentes. Elas são vítimas de ataques sistemáticos, alimentados por redes extremistas que se organizam em plataformas pouco monitoradas, de difícil rastreamento e com alto poder de disseminação.
O Brasil ainda não dispõe de um canal nacional único para denúncias contra esse tipo de crime. Mas o Ministério da Justiça já encaminhou à Casa Civil um projeto de lei nesse sentido.
“A gente está trabalhando com prioridade absoluta, como manda a Constituição. Há desafios, porque precisamos criar um espaço de articulação com todas as autoridades estaduais. Isso demanda um fôlego, mas esperamos poder cumpri-lo e entregá-lo ao presidente Lula até o final do ano”, disse.
Enquanto o Estado se mobiliza, redes criminosas estruturadas atuam no ambiente digital com alto grau de sofisticação. Na avaliação de Michelle Prado, pesquisadora especializada em radicalização e fundadora da ONG Stop Hate Brasil, a situação é alarmante. “A gente está vivendo uma epidemia de radicalização on-line de crianças e adolescentes”, diz.
Segundo ela, entre 2001 e 2024 foram registrados 61 atentados em escolas brasileiras, sendo 43 apenas nos últimos dois anos. “Foram centenas de apreensões que ocorreram desde 2023 para cá, principalmente de adolescentes, mas também há crianças abaixo dos 12 anos envolvidas nessa radicalização online”, afirmou.
Segundo a pesquisadora, o aliciamento começa em redes abertas como TikTok, Instagram e X. Em seguida os adolescentes são levados para plataformas fechadas e criptografadas, como Discord, Telegram, Clover Space (antigo Project Z), SimpleX e Zangi.
“Hoje, esse recrutamento acontece muito mais pelo TikTok e pelos stories do Instagram. O Clover Space, por exemplo, é a nova versão do Project Z, que conseguimos tirar da Play Store no passado. Em janeiro, eles voltaram com outro nome e voltaram a ser hospedados pelo Google”, denunciou Michelle Prado.
As práticas promovidas nesses espaços vão desde estímulo à automutilação e ingestão de produtos tóxicos até incitação à violência, crimes sexuais e abuso de menores. A especialista descreve o modus operandi dos criminosos. “Eles criaram o que chamam agora de palco, onde ficam um, dois, três, quatro, às vezes cinco pessoas que são administradores ou donos do servidor”, detalha.
Em seguida, vem o crime. “Entra uma outra pessoa que vai ser, no caso, a vítima. E aí esses outros indivíduos começam a sugerir, incitar que a vítima faça determinadas coisas, que vão desde beber água sanitária, ou se cortar, ou mesmo a incitação do abuso sexual infantil”, conta.
Michelle destaca que essas redes são pulverizadas, operam em tempo real e com alta velocidade de replicação. Ela também alerta para o surgimento de novas plataformas como SimpleX, descrita como “quase irrastreável” e com volume crescente de crimes envolvendo pornografia infantil. “Lá tem acontecido muito crime, principalmente relacionado ao abuso sexual infantil”, alerta.
Desafios
Para a coordenadora acadêmica da pós-graduação em Direito Digital do Instituto de Tecnologia e Sociedade, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ITS/UERJ), Chiara de Teffé, as plataformas digitais enfrentam o desafio de equilibrar a liberdade de expressão com a necessidade de coibir conteúdos ilícitos. “No cenário atual, mostra-se relevante que essas plataformas adotem políticas mais rigorosas de monitoramento e colaboração com as autoridades para prevenir a disseminação de conteúdos prejudiciais”, pontua.
Ela disse ainda que a prevenção de danos a crianças e adolescentes passa também pela educação digital, capacitando-os a reconhecer e evitar situações de risco on-line. “Famílias, escolas e instituições devem trabalhar conjuntamente para promover um ambiente digital seguro, enfatizando a importância do diálogo aberto sobre os perigos e potencialidades da internet”, opina.
Chiara disse que é preciso uma atuação conjunta de órgãos nacionais e internacionais para enfrentar crimes cibernéticos que transcendem fronteiras. Além disso, é necessário atualizar a legislação para acompanhar as novas modalidades de crimes digitais, garantindo mecanismos eficazes de investigação e punição.
- Fonte: Correio Braziliense
Foto de capa: Marcelo Casal/Agência Brasil