Era 31 de agosto de 1993 quando um jogo de futebol dentro da Casa de Custódia de Taubaté, no interior de São Paulo, terminou com um assassinato e o nascimento da maior organização criminosa da América do Sul. O time “Comando Capital”, formado por oito presos vindos da capital paulista, havia acabado de vencer o “Comando Caipira” no campeonato interno da prisão. Naquela noite, embriagados pela vitória e pelo desejo de sobrevivência, decidiram que não podiam parar por ali. Assim nasceu o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Oito homens estavam entre os fundadores. Entre eles, Idemir Carlos Ambrósio, de codinome Sombra, que se tornaria o primeiro líder; Mizael Aparecido da Silva, autor do primeiro estatuto; José Márcio Felício, o Geleião, criador da sigla PCC; e César Augusto Roriz, o Cesinha, conhecido por decapitar inimigos. Todos compartilhavam a mesma condição: eram paulistanos isolados e perseguidos dentro de uma prisão dominada por internos do interior.
O grupo se uniu para sobreviver, e paradoxalmente, para reivindicar direitos. Inspirados pela revolta que se espalhou após o Massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 presos foram mortos pela Polícia Militar de São Paulo, eles decidiram organizar-se para “evitar novas mortes e maus-tratos dentro do sistema prisional”.
“A falta de direitos dentro de uma instituição estatal criou a possibilidade de organização desses presos”, explica o cientista social e historiador Joel Paviotti, especialista na história do crime na América Latina. “No princípio, eles faziam isso para reivindicar condições mínimas de sobrevivência. Depois, viraram instituições criminosas gigantescas”.
O berço nas prisões: Estado ausente, crime presente
A trajetória do PCC não é isolada. Duas décadas antes, no auge da ditadura militar, surgia no Rio de Janeiro o Comando Vermelho (CV), que também nasceu dentro de uma prisão. No Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, presos comuns e presos políticos dividiam as mesmas celas. Dos encontros entre ladrões e militantes de esquerda, nasceu a Falange Vermelha, que logo se tornaria popularmente conhecida pela mídia como Comando Vermelho.
Assim como o PCC, o Comando Vermelho surgiu da revolta sobre o que se passava dentro do presídio, conhecido como “Caldeirão do Diabo”. Naquele momento presos de crimes comuns descobriam seus direitos dentro da cadeia com os presos políticos levados devido a militância esquerdista que trazia contradições ao regime militar instaurado.
Com o fim da ditadura e a Lei da Anistia, em 1979, os presos políticos foram libertados. Já os criminosos comuns permaneceram. Sozinhos, reorganizaram-se, agora com um novo propósito: financiar a sobrevivência fora das grades. Nos anos 80, os assaltos a banco deram lugar ao tráfico internacional de drogas, num momento em que a Colômbia se consolidava como produtora de cocaína e o Rio de Janeiro se transformava em rota e mercado.
Em pouco tempo, o Comando Vermelho dominava favelas e territórios inteiros, muitas vezes com a conivência de agentes públicos. O modelo de poder armado e territorial se consolidava no Sudeste e inspiraria, anos depois, outras facções pelo país.
Do ideal à corporação do crime
O PCC, por outro lado, adotou um caminho diferente. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, a facção paulista transformou-se em uma organização hierárquica, burocrática e empresarial. “O PCC é extremamente estruturado”, detalha Paviotti. “Tem setores específicos chamados de sintonias: sintonia dos gravados, que cuida dos advogados; sintonia do progresso, que lida com o tráfico e sintonia dos países, responsável pelas relações internacionais. É uma empresa ilegal, mas com uma lógica administrativa complexa”.
Hoje, o PCC opera dentro e fora das prisões, com uma rede de lavagem de dinheiro que vai do setor sucroalcooleiro até postos de gasolina, sendo que 1.300 deles foram fechados em operações de combate à facção.
“Eles tinham uma cadeia produtiva completa”, diz Paviotti. “Desde a plantação de cana até os postos. Quando cobram mais barato pelo combustível, quebram o pequeno empresário e fortalecem as grandes redes. É um efeito econômico perverso”.
A atuação das facções também transformou o cotidiano de comunidades inteiras. No Rio de Janeiro, o Comando Vermelho controla até o comércio e os serviços básicos. “Em algumas favelas, o cigarro que entra é o contrabandeado pelo CV. Nenhuma marca de fora entra. A internet é deles, o mototáxi é deles. Você paga a taxa que eles impõem”, relata o historiador. “Isso atinge a economia local e a vida das pessoas comuns”.
Desigualdade: o terreno fértil do crime
Por trás da ascensão das facções, está um fator antigo e persistente: a desigualdade social. O Brasil mantém uma das maiores taxas de encarceramento do mundo, concentrada justamente entre os jovens, negros e pobres, o público mais vulnerável à cooptação.
“A desigualdade e a exclusão são elementos centrais”, explica Paviotti. “O sujeito que pratica um crime, em sua maioria, já é alguém que sofre com pobreza e falta de oportunidades. Quando ele entra na prisão, é excluído mais uma vez. E dentro desse ambiente desumano, a facção surge como uma promessa de dignidade e proteção”.
Essa lógica faz com que o recrutamento seja constante, especialmente entre os jovens. “Eles acreditam que vão se estabilizar, ter poder, conquistar bens materiais. É uma ilusão de pertencimento e ascensão social”, diz.
As facções cresceram não apenas por causa da miséria, mas também pela lentidão do Estado. “O crime age muito mais rápido do que o Estado”, afirma Paviotti. “Enquanto o Estado é pesado, cheio de burocracias e legislações, a facção se move com agilidade. Ganha dinheiro, compra armas, suborna servidores e monta estruturas de proteção”.
Essa eficiência faz com que, em muitos lugares, as facções substituam o poder público. “Dentro das comunidades, o PCC resolve briga por causa de botijão de gás, de vizinho que invadiu o quintal. Ele vira uma autoridade informal. É perverso, mas funciona”, explica.
“Tem que ter prata e tem que ter bala”
Para Paviotti, o combate às facções não pode ser apenas policial. É preciso articular políticas públicas e controle financeiro. “A alteração na lei de combate ao crime organizado é importante, mas o enfrentamento tem que ser coletivo com União, Estados e municípios cooperando no rastreamento de dinheiro, no combate ao tráfico de armas e em políticas sociais para evitar o ingresso de jovens no crime”, defende.
“Tem que ter prata e tem que ter bala”, resume o cientista. “Tem que ter combate econômico e combate armado. Só sufocando o dinheiro e as drogas é que se enfraquece uma facção”.
Hoje, tanto o PCC quanto o Comando Vermelho ultrapassaram os muros das cadeias e infiltraram-se em diversas estruturas da sociedade, inclusive na política, segundo o historiador. “Não dá mais para tirá-las. Já estão infiltradas em todos os meios, e teremos que conviver com isso”, afirma.
Quase meio século depois do surgimento da primeira facção, o ciclo parece completo: o Estado que negligenciou os direitos dentro das prisões agora enfrenta o poder paralelo que ajudou a criar. Do futebol em Taubaté às favelas cariocas, o crime aprendeu a jogar e a vencer dentro das regras que o próprio sistema impôs.
Foto: Agência Brasil


















